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quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Enfim só (Crônica)

Eu tinha pouco mais de vinte anos quando fiz minha primeira viagem ao exterior, só eu e a minha mochila. Ao aterrissar em Londres, aluguei um quarto na casa de uma inglesa meio pirada, dei um telefonema para tranquilizar a família e fui deitar, nocauteada que estava pelo fuso horário. Fechei os olhos na escuridão daquele quarto desconhecido e pensei com meus botões: estou completamente sozinha.
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Naquela noite eu não dormi direito, mas acordei disposta a me enfrentar. Viajei por diversos países, conheci pessoas em trens, me hospedei em casa de gente que conhecia há cinco minutos e absorvi hábitos e idéias que nunca haviam me ocorrido. Voltei com dúzias de fotos, um jeans que foi direto para o lixo, sem uma pila no bolso, e tão sozinha como quando havia partido. Mas a solidão, agora, não puxava mais meus pés na hora de dormir.
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Eu não era nenhuma adolescente quando entrei naquele avião, mas lidava com a solidão como se ainda tivesse 14 anos. Eu queria sim, conhecer a Europa, mas no fundo o que eu queria mesmo era testar os meus limites, meus medos, dirigir o foco de luz para dentro.
E eis que iluminei uma solidão colorida e corajosa, que nada tinha de bicho-papão, e que me acompanha até hoje. Se ela quiser me deixar, eu não deixo.
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É claro que existe uma grande diferença entre passar um tempo sozinha em Paris e passar todos os sábados sozinha num quarto na Riachuelo. Viver sem família, sem amigos, sem amor, é um porém que cala fundo. Mas a solidão pode também ocupar bastante o espaço.
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A solidão é valiosa quando se quer escrever, seja uma carta, um diário, uma receita, ou mesmo aquele poema que você morre de vergonha de mandar para o concurso e é essencial para ler. Um livro quase sempre é melhor companhia do que uma conversa jogada fora num bar.
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A solidão é ótima num cinema. Não fala durante a projeção, não faz barulho com o papel de bala, não reclama do ar condicionado e nem protesta se você escolhe um filme canadense.
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A solidão é perfeita na praia. Não pede para passar bronzeador nas costas, fica hora boiando com você no mar e sai de fininho quando um sósia do Rômulo Arantes se aproxima para pedir informação.
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A solidão é parceira em caminhadas, não fica fazendo perguntas quando você mal tem fôlego para respirar.
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É silenciosa quando você está assistindo televisão, não espirra bem na hora em que o mocinho diz o nome do assassino.
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É uma mão na roda para fazer compras. Não faz você entrar em lojas onde a camiseta básica custa duas vezes a prestação do seu apartamento.
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Fica quietíssima quando você está dirigindo. Não troca a estação do rádio sem pedir licença e nem faz comentários sobre a velocidade do carro.
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Gente, a solidão é um achado!
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Perdeu quem apostou que eu sou uma eremita e vivo no meio do mato. Sou urbana até a raiz dos cabelos, e se tivesse de escolher entre viver em Tókio ou numa ilha deserta, iria para a Terra do Sol Nascente feliz da vida. Mas abdico de solidões sociais, como participar de grupos onde ninguém ouve ninguém, e discutir assuntos que não são da minha conta. Estar com alguém só para não estar sozinho é solidão mal administrada. Muitas pessoas que vivem em formigueiros humanos como São Paulo se sentem muito mais solitárias do que Almir Klink em suas excursões glaciais. Solidão não se cura com o amor dos outros. Se cura com amor próprio.
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Quanto mais íntimos de nós mesmos, menos críticos nos tornaremos em relção às outras pessoas. A solidão diluji a ironia e os ciúmes, e faz com que a gente reflita mais sobre as nossas pró prias ações, em vez de se dedicar religiosamente à vida alheia.
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Nunca voltei a viajar sozinha, mas se precisasse, embarcaria com a mesma coragem, só que levando menos ansiedade, menos carência, menos perguntas, e dois jeans a mais.
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MEDEIROS, MARTHA. Geração Bivolt. Porto Alegre: Artes e Oficina. (Pag 19 à 22)

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